Crônica de um domingo na feira

– Mais alto, papai. Mais alto

O sorriso do garoto parece derreter o coração do pai. O parque estava repleto de crianças e o som da feira um pouco distante.

– Tá, mas só até sua mãe chegar. Você sabe que ela não deixa você subir muito com o balanço.

Feira em Artur Nogueira reúne pessoas de toda a região.
Foto: Isadora Stentzler.
Aquele era mais um domingo de feira para a família. Porém, aquele dia tinha uma pitada especial: a casa teria a presença dos familiares da esposa. “Vixe, um dia inteiro com a sogra!”, pensava o marido. Preferiu ir com a roupa de sempre: um calção jeans com tênis branco, além da camiseta sem manga verde, deixando exposta a tatuagem no braço direito com o símbolo de uma águia. Já para o menino, a mãe fez questão de colocar a camiseta listrada pólo, com tons de laranja, branco e verde. Era a “estreia” do vestuário.

– Nada de sujar hein. Quero ver você bonitinho hoje.

9h30 da manhã. O carro do casal chega ao local da feira, na rua Duque de Caxias. Estacionamento lotado. Dirigem mais um pouco. Alcançam a vaga já nas redondezas do supermercado São Joaquim.
A lista de compras na mão da esposa está repleta de itens. Um quilo de tomate, quatro cebolas, duas dúzias de bananas e meio quilo de maçã, a fruta preferida de sua mãe.

– Vamos amor, não pode demorar muito. Ainda nem comecei a fazer o arroz.
A pressa parece não atingir o pai e o garoto. A cada passo a caminhada diminuía de ritmo, enquanto olhavam detalhadamente os primeiros quiosques da feira. Ao avistar a barraca do pastel, o menino não se conteve.

– Pasteeeeellll. Olha lá o pastel mãe. Por favor, compra. Compra. Compra. Compra!

– Filho, já falei. Temos que voltar logo para casa. Na próxima a gente pega.

Instantaneamente a expressão alegre do garoto se fechou. Quando já ameaçava um choro, seu pai segurou o seu braço e o confortou.

– Vamos lá filho, enquanto a mamãe compra as frutas ali eu levo você.

Imediatamente o menino abriu um sorriso e correu em direção à famosa barraca. O local, ponto de encontro tradicional da feira, estava cheio. As mesas espalhadas ao redor da via estavam lotadas. De famílias como a daquele garoto a casais de jovens recém-comprometidos. Um grupo de cavaleiros se reunia em um círculo, um pouco mais abaixo, no outro lado da praça. Todos com o pastel na mão. Sentado na sarjeta imediatamente ao lado da barraca está um senhor de idade, contando histórias da antiga Artur Nogueira para um grupo de três crianças e uma mãe.

– Pai, por que tem tanta gente aqui hoje?

– Aqui é sempre assim filho. Você não vem aqui todos os domingos, praticamente?

– Sim... mas hoje parece diferente.

Após cerca de três minutos na fila é a vez do pai e do garotinho.

– Moça, me veja dois pasteis de frango e um suco de laranja. Ah, e me vê dois canudinhos.

– Cinco reais. Vai querer ketchup?

– Sim, dois pacotinhos já servem.

Após entregar uma nota de dez e receber o troco, o pai puxa seu filho para um espaço vazio na calçada.

– Vamos sentar aqui filho.

– E a mamãe?

Neste instante, ele olha para o movimento da feira. “E agora, onde essa mulher tá meu pai?”, pensa. 

Preocupada com o almoço, a mãe lembra uma máquina programada para comprar. “Moço, quero esses dois cachos aqui madurinhos ó”, “quanto tá essa bandeja?”. Em cada barraca por onde passa, deixa notas de cinco e dez reais e risca sua lista. Agora faltam poucos itens.

– Ela está ali filho. Vamos.

O pastel foi devorado em questão de instantes. Logo eles alcançaram a mulher com a lista, em uma barraca cerca de dez metros à frente.

– Já comeram? Enquanto estavam aí já adiantei as compras. Gastaram quanto?

– Cinco reais. Ainda tem um resto aqui.

Enquanto caminhavam o telefone da mulher tocou. “Alô”, “bença pai”, “sim, já estamos nos preparando aqui”, “que horas vocês chegam?”. Era o que faltava. A agitação anterior ficou ainda maior.

– Amor, meu pai acabou de ligar. Estão chegando em pouco mais de uma hora. Só faltam os legumes. 

Vamos lá pro final da feira que a gente pega mais barato.

– Ah meu pai, você sempre fica assim nessa correria quando seus pais tão aqui

– Ah é? E quando sua família vem fazer churrasco lá em casa? Você não fica agitado?

Parecia começo de discussão, até o garoto interromper o diálogo.

– Olha lá a sorveteria. Por favor, mãe, compra um sorvete para mim. Só um, prometo que é só esse. Vai, por favor.

– Peça pro seu pai, filho. Não é ele que tem todo o tempo do mundo?

A ironia é rebatida pelo pai com um olhar fechado. Ele segura firme nas mãos do filho e o leva para a sorveteria sem responder a questão. “Enquanto vocês vão aí eu vou comprar os legumes”, falou a mãe enquanto já acelerava o passo em direção às barracas, quase na avenida XV de Novembro.

O movimento na feira parecia crescer. Um conjunto de barracas azuis, logo em frente à sorveteria, atraía a atenção de quase todos que por ali passavam. Desde camisetas de times de futebol até brinquedos, passando por acessórios de cozinha e bijuterias. Ali do lado, um rapaz fechava negócio por dois relógios e em uma pequena banca laranja à frente uma senhora demonstrava interesse por um conjunto de toalhas de mesa.

– Me vê dois sorvetes casquinhas com cobertura, por favor?

– Qual o sabor moço?

– Maracujá e chocolate. Os dois com cobertura de chocolate.

Mais cinco reais saem do bolso do pai. O menino pede para sentar-se à mesa ao lado da recepção, porém o pai opta por dois assentos localizados na parte externa do estabelecimento, na descida da Farmácia do Carlinhos.

Após uma noite fria de sábado, o sol aparece sem qualquer nuvem no céu nogueirense. Feirantes e visitantes de sandálias e bermudas e o parquinho cheio de crianças. Sim, o parquinho. Bem em frente à sorveteria. Logo aquela sorveteria.

– Pai, vamos lá para o parquinho.

– Mas filho, nem terminamos o sorvete.

– Vamos pai, do lado do balanço tem um banquinho. A gente senta lá e depois você me empurra.

A animação do garoto venceu. Desta vez, era o menino que puxava o pai até o local em meio ao movimento da feira. O sorvete ainda estava na metade.

“Peguei”, “agora é você”. O barulho deixava a criança ansiosa. Enquanto o pai era só sorrisos. Parecia se colocar ali, querer voltar a infância. Por alguns instantes se esqueceu de que tinha um sorvete em suas mãos.

– Papai, tá pingando em sua mão.

– Putz, nem reparei. E agora? Fica aqui no balanço que eu vou pegar um pano ali e já volto.

– Tá.

Timidamente, a criança senta em um dos três bancos do balanço. Segura nas grades de ferro que sustentam a estrutura e projeta seu corpo para a frente e para trás. Um pedaço do sorvete cai sobre sua camiseta. Ele nem repara.

A demora para limpar as mãos fez com que perdesse o começo da brincadeira do filho. Quando retornou ao parquinho, o pai encontrou o filho correndo atrás de outras crianças ao redor do escorregador. Decidiu comprar uma cerveja na barraca ao lado e assistir a cena de “camarote”.

– Vai filho, desce. Papai tá aqui olhando.

– Saca só essa aqui.

Após cerca de quinze minutos, o filho correu em direção ao balanço e convidou o pai.

– Vem pai, me empurra.

– Tá, vai lá.

A cena lembra o filme “À Procura pela Felicidade”. Naquele instante somente pai e filho pareciam existir em meio às centenas de pessoas circulando apressadas na estreita via da feira. O barulho de feirantes citando itens e preços para atrair os consumidores tinha ficado para trás. A cada empurrada no balanço, o pai parecia se esquecer de alguma preocupação ou problema. Cada um era exterminado naqueles segundos. A criança olhava fixamente para o pai e segurava forte na grade.

– Mais alto, papai. Mais alto.

– Tá, mas só até sua mãe chegar. Você sabe que ela não deixa você subir muito com o balanço.

Enquanto ainda recitava a última sílaba da palavra balanço. Sua esposa apareceu com mais duas sacolas. A feira estava completa.

– Pronto, terminei. Agora vamos que meus pais tão chegando. Pera aí, que mancha é essa aí na sua calça?

O rosto moreno do pai ficou pálido. “Xi, a camiseta nova do moleque”, pensava. O olhar da mãe já dizia tudo. “A gente se acerta em casa”.
Enquanto caminhavam para o carro uma última parada. Desta vez, o filho avistou uma camiseta do 

Corinthians pendurada em uma imensa barraca de toldo azul pouco depois do parque.

– Olha papai, a camisa do Corinthians.

– É filhão. O Timão. E como se canta a música?

– Aqui tem um bando de louco. Louco por ti, Corinthians.

– Tá ótimo filho, quer uma para você?

– Quero.

Apesar da pressa, a mãe resolve não interferir desta vez. Apenas observa o pai comprando uma camiseta infantil do clube para o filho. Ela esboça um sorriso. No fundo, se orgulha do amor e do carinho do pai pela criança. Pouco depois alcançam o automóvel, já fora da área da feira. Os alimentos e objetos comprados seguem para o porta-malas. A mãe pega o celular e telefone para seus pais. O pai liga o motor do carro e começa a dar a ré. Já o filho encosta o rosto no vidro de trás e observa, com alguma dificuldade, o movimento de pessoas entre as barracas, a barraca do pastel, ainda lotada de gente, e o parque – o palco da diversão daquele domingo.

– Papai, semana que vem você promete me trazer na feira?


– Sim, filho. Eu prometo.

Por Guilherme Cavalcante
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Sobre a ABJ

A ABJ é a agência júnior de jornalismo do curso de Comunicação Social do Unasp - Centro Universitário Adventista de São Paulo.

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